línguas indo-europeias

PALAVRAS SEMELHANTES, LÍNGUAS APARENTADAS?

A simples semelhança de forma ou significado entre palavras de línguas diferentes não é garantia do parentesco entre as duas línguas, porque poderia se tratar de um empréstimo. Mas mesmo a existência de palavras com forma e significado semelhante entre línguas aparentadas não indica necessariamente que se trata de termos cognatos. Um dos meus exemplos favoritos são os verbos haver e haber, em português e espanhol, e os verbos to have e haben em inglês e alemão, respectivamente. Claro que no interior das famílias linguísticas, a relação de parentesco é mais evidente: haver e haber são cognatos, derivados do latim habere, e to have e haben são cognatos, derivados de um mesmo étimo proto-germânico. Mas o mesmo não se dá com a forma latina e a germânica, elas não são cognatas a respeito da semelhança de forma e significado.

A grande novidade introduzida pela linguística histórico-comparativa, que marca o surgimento da linguística como ciência, é a comparação não de palavras isoladas (o que vinha sendo feito desde os etimologistas da Antiguidade), mas das formas do sistema linguístico. Assim, por exemplo, não bastava que você tivesse um som aspirado no início em habere e have/haben, era necessário que você houvesse uma correspondência geral e consistente entre um som aspirado em latim e em germânico. E essa correspondência não se dá…

Em 1819, na sua Deutsche Grammatik, Jacob Grimm apresentou as correspondências gerais entre o germânico e outros ramos linguísticos indo-europeus. Uma das características mais marcantes dessa correspondência era a de que o germânico apresentava consoantes bastante diferentes dos outros ramos linguísticos.

Em palavras que a maior parte das línguas indo-europeias históricas possuíam consoantes oclusivas surdas, o germânico possuía fricativas. Onde os outros ramos possuíam oclusivas sonoras, o germânico possuía oclusivas surdas. E em palavras em que os outros ramos apresentavam vestígios de uma consoante aspirada original, o germânico apresentava oclusivas sonoras, não-aspiradas. Essa grande realocação do ponto e modo de articulação das consoantes foi chamada de Primeira Mudança Consonântica germânica, porque o alemão padrão (o Hochdeutsch, o “alto” alemão) também sofreu um processo de alternância de consoantes, a partir do século IX, chamada de Segunda Mudança Consonântica (lembre-se que o Grimm estava escrevendo uma gramática do alemão).

Assim, have/haben e haver/haber não podem vir do mesmo étimo ancestral, as consoantes não batem. As fricativas na raiz das palavras germânicas costumam corresponder a oclusivas nas palavras germânicas. Assim, o verdadeiro cognato de have/haben em latim é o verbo capere, que corresponde uma raiz com duas consoantes oclusivas kap-. Comparando-se essa forma não com as formas do inglês e do alemão atuais, mas com a forma mais antiga de [to] have o verbo hæfan do anglo-saxônico, a correspondência entre uma raiz kap-, em latim, e uma raiz haf-, em germânico, se mostra mais clara. Assim, o cognato de have/haben, é o verbo caber, em português (e espanhol).

Por outro lado, a aspirada h em início de palavra, em latim, costuma corresponder a uma oclusiva sonora em germânico, como se vê no gótico gasts, bi-gietan (for-gotten) e no latim hostis, prae-hendere. Já a oclusiva sonora em meio de palavra em latim só pode corresponder a uma oclusiva sonora em meio de palavra em germânico, ambas derivadas de uma oclusiva sonora aspirada *bh, em proto-indo-europeu. Isso nos daria uma raiz original *ghabh, que é encontrada, por exemplo, no verbo inglês to give e no alemão geben.

O linguista francês Émile Benveniste observou que as línguas indo-europeias costumam apresentar uma espécie de confusão entre os étimos de verbos que indicam relações de posse, especificamente entre as noções de “ter”, “tomar (à força)” e “dar”. Assim, o verbo “dar” de diversos ramos indo-europeus (latim, grego, eslavo), que se encontra no nosso verbo dar, corresponde ao verbo hitita dai, que significa “tomar”. Na linha de Benveniste, somos tentados a ligar essa facilidade com que “ter” pode ser “tomar” pode ser “dar” com uma ideia muito forte de “propriedade” nas instituições das sociedades indo-europeias, que pode se originar de uma concessão quanto da conquista ou do saque, sempre justificados de alguma forma. Isso combina com uma natureza expansionista intrínseca das sociedades indo-europeias, que através da formação de impérios convencionais (hitita, persa, romano) ou coloniais (as potências coloniais europeias a partir do século XV, expandiram as línguas indo-europeias para todos os continentes (incluindo a Antártida). Mas esse é um tema controverso e fica pra outra conversa…