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As origens do Germânico e os Ecos de uma Interpretação Errada

Antonio Paulo Steffen Neto*

No início do século XX, já quase cem anos depois de Thomas Young usar o termo “indo-europeu”, havia uma forte suspeita de que as línguas germânicas poderiam ter algum grau de influência não-indo-europeia em sua origem. Essa suspeita não era nova, e era devida a algumas características que destoavam das de outros ramos indo-europeus. Dentre essas características divergentes, o léxico acabou ganhando importância em algumas correntes pela falta de correspondência em outras lados da família, primeiramente com foco no vocabulário ligado a atividades marítimas, depois expandido para englobar também fauna, flora e outros grupos lexicais.

O primeiro sujeito importante para nós entra aqui, ele se chama Bruno Liebich. Na esteira do que vinha sendo desenvolvido, Liebich publica em 1899 seu livro “Die Wortfamilien der lebenden hochdeutschen Sprache als Grundlage für ein System der Bedeutungslehre”, no qual apresenta uma série de estatísticas sobre a origem etimológica das raízes das palavras alemãs (como já diz o próprio título), mas o foco aqui fica nas estatísticas. Poucos anos depois da publicação, Hermann Hirt usa elas como parte de sua própria pesquisa etimológica, e classifica as etimologias suspeitas, notavelmente as ligadas à atividades marítimas, por exemplo Schiff e Boot, como “não explicadas”, ou “incertas”. E tudo bem com isso, afinal elas eram “não explicadas” e “incertas”.

Um contemporâneo de Hirt, por outro lado, não é tão comedido, e é exatamente ele o protagonista dessa história. Sigmund Feist foi um pedagogo e linguista alemão do início do século XX. Fora do campo da linguística histórica, seus grandes trabalhos estão voltados para os estudos etnográficos das populações judaicas, já na linguística ele é conhecido por seus trabalhos com a língua gótica, e, principalmente, por ser o primeiro proponente da teoria de um substrato não-indo-europeu no proto-germânico.

Em 1910, já em sua primeira obra sobre o tema, Feist apresenta sua ideia para a origem do léxico sem etimologia explicada, apoiando-se na pesquisa e nos dados publicados por Liebich. Aqui temos a primeira aparição do número mágico de Feist, os 30%. Como é  mostrado pelos números de Liebich na tabela abaixo:

(Tabela retirada de: Bichlmeier, Harald (2016). Zur Frage des nichtindogermanischen Substrats im Germanischen: Ein kurzer Überblick. In: Slovo Slovenost Vol. 77, p. 316-336. 2016.)

Mas a que é relativo esse número? Bom, de acordo com Feist, 30% do léxico proto-germânico teria origem em um substrato não-indo-europeu. Ele inclui dentro desse número, como mostra a tabela, toda e qualquer raiz que esteja presente somente nas línguas germânicas, nas línguas germânicas ocidentais e presente somente na língua alemã. Ele também usa a ideia de substrato para justificar toda e qualquer etimologia não explicada, ou não conhecida, como tendo origem nessa língua que influenciou o germânico, diferentemente do que Hirt faz, ao simplesmente dizer que determinada etimologia é “inexplicada”, ou “incerta”. É justamente essa generalização que será um dos principais argumentos contra o número de Feist, e sua radicalidade. Günter Neumann, décadas depois, por exemplo, não tem problema algum com o infortúnio de deixar em aberto as etimologias não explicadas, apontando para os avanços na área que poderão preencher as lacunas deixadas, afinal, não se pode explicar tudo só com a vontade.

O número de Feist, apesar de baseado em uma interpretação errada das estatísticas sonoras apresentadas por Liebich, serve como, a partir de uma generalização, uma maneira rápida de sustentar a ideia proposta. E apesar de sua origem, ele continuou a ser reproduzido e citado como ponto de partida para a pesquisa de pesquisadores até hoje, tendo pouca contestação até os anos 1980. Essa cifra tornou-se algo que ecoa até hoje, mais de um século depois de ser proposto, sendo usado como um sustentáculo de teorias diversas a respeito da origem do ramo germânico das línguas indo-europeias, a ponto de ter sido necessária a publicação de um artigo que explique o erro, como foi feito pelo professor Harald Bichlmeier.

Há realmente influência não-indo-europeia nas línguas germânicas? Sim. E a discussão torna-se mais complexa pelo trabalho em conjunto de dados de diferentes ciências. Mas isso é uma conversa para outro dia.

*Antonio Paulo Steffen Neto é aluno do Curso de Letras Português e Alemão da UFPR. No momento, está desenvolvendo o projeto de iniciação científica Novos Horizontes a partir do Cruzamento de dados Arqueogenéticos na Linguística Indo-europeia.

PALAVRAS SEMELHANTES, LÍNGUAS APARENTADAS?

A simples semelhança de forma ou significado entre palavras de línguas diferentes não é garantia do parentesco entre as duas línguas, porque poderia se tratar de um empréstimo. Mas mesmo a existência de palavras com forma e significado semelhante entre línguas aparentadas não indica necessariamente que se trata de termos cognatos. Um dos meus exemplos favoritos são os verbos haver e haber, em português e espanhol, e os verbos to have e haben em inglês e alemão, respectivamente. Claro que no interior das famílias linguísticas, a relação de parentesco é mais evidente: haver e haber são cognatos, derivados do latim habere, e to have e haben são cognatos, derivados de um mesmo étimo proto-germânico. Mas o mesmo não se dá com a forma latina e a germânica, elas não são cognatas a respeito da semelhança de forma e significado.

A grande novidade introduzida pela linguística histórico-comparativa, que marca o surgimento da linguística como ciência, é a comparação não de palavras isoladas (o que vinha sendo feito desde os etimologistas da Antiguidade), mas das formas do sistema linguístico. Assim, por exemplo, não bastava que você tivesse um som aspirado no início em habere e have/haben, era necessário que você houvesse uma correspondência geral e consistente entre um som aspirado em latim e em germânico. E essa correspondência não se dá…

Em 1819, na sua Deutsche Grammatik, Jacob Grimm apresentou as correspondências gerais entre o germânico e outros ramos linguísticos indo-europeus. Uma das características mais marcantes dessa correspondência era a de que o germânico apresentava consoantes bastante diferentes dos outros ramos linguísticos.

Em palavras que a maior parte das línguas indo-europeias históricas possuíam consoantes oclusivas surdas, o germânico possuía fricativas. Onde os outros ramos possuíam oclusivas sonoras, o germânico possuía oclusivas surdas. E em palavras em que os outros ramos apresentavam vestígios de uma consoante aspirada original, o germânico apresentava oclusivas sonoras, não-aspiradas. Essa grande realocação do ponto e modo de articulação das consoantes foi chamada de Primeira Mudança Consonântica germânica, porque o alemão padrão (o Hochdeutsch, o “alto” alemão) também sofreu um processo de alternância de consoantes, a partir do século IX, chamada de Segunda Mudança Consonântica (lembre-se que o Grimm estava escrevendo uma gramática do alemão).

Assim, have/haben e haver/haber não podem vir do mesmo étimo ancestral, as consoantes não batem. As fricativas na raiz das palavras germânicas costumam corresponder a oclusivas nas palavras germânicas. Assim, o verdadeiro cognato de have/haben em latim é o verbo capere, que corresponde uma raiz com duas consoantes oclusivas kap-. Comparando-se essa forma não com as formas do inglês e do alemão atuais, mas com a forma mais antiga de [to] have o verbo hæfan do anglo-saxônico, a correspondência entre uma raiz kap-, em latim, e uma raiz haf-, em germânico, se mostra mais clara. Assim, o cognato de have/haben, é o verbo caber, em português (e espanhol).

Por outro lado, a aspirada h em início de palavra, em latim, costuma corresponder a uma oclusiva sonora em germânico, como se vê no gótico gasts, bi-gietan (for-gotten) e no latim hostis, prae-hendere. Já a oclusiva sonora em meio de palavra em latim só pode corresponder a uma oclusiva sonora em meio de palavra em germânico, ambas derivadas de uma oclusiva sonora aspirada *bh, em proto-indo-europeu. Isso nos daria uma raiz original *ghabh, que é encontrada, por exemplo, no verbo inglês to give e no alemão geben.

O linguista francês Émile Benveniste observou que as línguas indo-europeias costumam apresentar uma espécie de confusão entre os étimos de verbos que indicam relações de posse, especificamente entre as noções de “ter”, “tomar (à força)” e “dar”. Assim, o verbo “dar” de diversos ramos indo-europeus (latim, grego, eslavo), que se encontra no nosso verbo dar, corresponde ao verbo hitita dai, que significa “tomar”. Na linha de Benveniste, somos tentados a ligar essa facilidade com que “ter” pode ser “tomar” pode ser “dar” com uma ideia muito forte de “propriedade” nas instituições das sociedades indo-europeias, que pode se originar de uma concessão quanto da conquista ou do saque, sempre justificados de alguma forma. Isso combina com uma natureza expansionista intrínseca das sociedades indo-europeias, que através da formação de impérios convencionais (hitita, persa, romano) ou coloniais (as potências coloniais europeias a partir do século XV, expandiram as línguas indo-europeias para todos os continentes (incluindo a Antártida). Mas esse é um tema controverso e fica pra outra conversa…